Casa Vogue

Operário da arte

TEXTO LARA MUNIZ

No centenário do criativo Geraldo de Barros, resgatamos seu legado às artes e ao design autoral brasileiro

Pintor, fotógrafo, figurinista, designer de móveis, gravurista, empreendedor, inspiração: Geraldo de Barros cabe em todas essas definições. Mergulhou em cada manifestação artística de seu tempo com afinco e dedicação, mantendo olhos sempre abertos para as agruras sociais do Brasil, onde nasceu há exatos 100 anos

muito antes de o termo existir, Geraldo de Barros (1923-1998) foi multimeios. Experimentador e inquieto, conseguiu a façanha de acompanhar ininterrupta e atentamente o debate artístico que lhe foi contemporâneo. “Considerando que ele começou a atuar por volta de 1945 e seguiu produtivo até falecer, em 1998, foi um longo período para se manter atual”, observa Heloisa Espada, nome à frente da curadoria do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) e organizadora do livro Geraldo de Barros e a Fotografia (Edições Sesc, 2015, 300 págs.). Foi realizando interferências sobre registros fotográficos que Geraldo de Barros se despediu da vida. Seu último trabalho revela uma autorretrospectiva a partir de imagens clicadas em viagens e outras atividades privadas, que ele mesmo batizou de Sobras. “De sobras, não tem nada. Ali vemos Geraldo por ele mesmo, um compilado coerente, que permite entender sua trajetória”, avalia o cineasta suíço Michel Favre, um dos guardiões de sua obra. Coube a Favre, ao lado de Lorenzo Mammi, a curadoria da exposição Geraldo de Barros – Imaginário, Construção e Memória, que o Itaú Cultural montou em 2022 com mais de 400 itens, muitos dos quais pertencentes a esta última série. A delicadeza desse acervo, sob proteção em regime de comodato do Instituto Moreira Salles, em breve terá sua versão digital disponível para consulta, já como parte das homenagens ao centenário de nascimento do artista. Mas para além da despedida, a fotografia também abriu as primeiras portas para o brasileiro pioneiro. Fotoformas, exibida no Masp em 1950, foi a

primeira exposição individual de fotografias abstratas no Brasil. Por causa dela, Geraldo de Barros ganhou uma bolsa de estudos do governo francês que o levou a se licenciar por um ano do cargo que ocupava no Banco do Brasil para viajar pela Europa em reconstrução. A experiência serviu para que ele sentisse in loco o sopro de rebeldia vindo do Velho Continente, que aproveitava ao máximo cada migalha de liberdade depois do sofrimento da Segunda Guerra Mundial.

CORAGEM PLURAL

Antes de tudo, pintor. Era assim que Geraldo de Barros se apresentava a quem lhe pedisse uma identificação como artista. Na vida real, previdente, foi funcionário do Banco do Brasil por mais de 30 anos, segurança que permitia as ousadias inventivas. “Ele começou no mercado formal muito jovem, por volta dos 14 anos. Por isso também se aposentou cedo, antes de alcançar os 50. A rotina dele era de trabalho pela manhã, até as 13h. Depois, chegava em casa e ligava o lado artista”, lembra com carinho a filha Lenora de Barros, outro nome de peso na arte brasileira.

Esse pé fincado na realidade servia de combustível para alimentar sua consciência social. Durante os idos de 1954, fez uma pausa na pintura e dedicou-se à fotografia. Numa ida ao bairro paulistano do Alto do Ipiranga, decidiu fotografar a Capela do Cristo Operário e conheceu o pároco local, o frei dominicano João Batista Pereira dos Santos, que mantinha uma oficina mecânica nos fundos da igreja. Juntos, eles transformaram o espaço numa pequena – e revolucionária – fábrica de móveis, a Unilabor. O nome derivado do latim agrega os termos união e trabalho, boa síntese do que era praticado ali. O formato de cooperativa garantia provisões acima da média para os funcionários, que dispunham ainda de atividades educativas e sociais para si mesmos e para suas famílias. “O tempo da Unilabor fez com que meu pai interrompesse temporariamente sua dedicação às artes mais tradicionais. Ao desenhar a linha de móveis, ele não só descobriu mais um talento como também uma fórmula para socializar a arte, um dos seus grandes sonhos”, avalia Fabiana

“Ele foi um artista generoso. Presenteava amigos com trabalhos autorais e sempre manteve o costume de fazer doações regulares de suas obras a museus e instituições artísticas” LENORA DE BARROS

de Barros, artista plástica radicada na Suíça e responsável pelo acervo da família ao lado do marido, Michel Favre.

REPRODUTIBILIDADE PARA TODOS

Atento aos objetos do cotidiano, Geraldo de Barros percebeu cedo que a arte não estava só na pintura. “Ele via com clareza que o design de um liquidificador ou de um carro também continha arte”, observa Lenora. A ideia da popularização da cultura permeava o viés utópico que virou sua assinatura, assim como uma crítica sutil à modernidade, que com seus benefícios e perigos se mostrava capaz de potencializar a destruição e apartar as pessoas. Mais contemporâneo, impossível. Os móveis da Unilabor se revelaram um caminho de distribuir arte por meio de um produto econômico, mas com sofisticação estética, para um grande número de pessoas. Em acordo com a família, a Dpot assina a produção atual do mobiliário. “A adequação dos trabalhos dele é muito relevante. O traço que ele empregava nos anos 1960 poderia ter sido feito hoje”, observa Baba Vacaro, diretora de criação da marca. Na prática, a diferença entre as peças antigas e as atuais se dá pelo material. Antes havia jacarandá, hoje a imbuia é a matéria-prima principal. Já os tubos de ferro seguem com a mesma bitola, as ponteiras de latão permanecem iguais e os parafusos continuam com o modelo idêntico – o que revela um pensamento de racionalização da fabricação plausível. O sonho da Unilabor durou até 1962, quando dificuldades administrativas tornaram inviável a continuidade do projeto. Mas a ligação de Geraldo com o mobiliário e o empreendedorismo não terminaria ali. Em 1964 ele voltou ao mercado com a Hobjeto, empresa na qual criaria outra linha de design com formas simples e fáceis de produzir, sem perder refinamento. Chegou a empregar 700 pessoas no negócio, que manteve aberto por 15 anos, até sofrer o primeiro acidente vascular, que restringiria parte de seus movimentos.

MÚLTIPLA PRODUÇÃO

Durante os anos 1960 a 80, a experimentação criativa avançou para além do design de mobiliário. Nessa época, as gravuras, pinturas

“A fase em que se dedicou à Unilabor está entre os momentos marcantes da carreira de Geraldo de Barros. Ele se entregou ao projeto e participava ativamente da vida da comunidade que se formou nesse entorno”

FABIANA DE BARROS

sobre peças publicitárias e telas feitas com recortes de laminado melamínico – estas últimas despertavam dúvida sobre sua identificação: quadro ou objeto? – ocupavam sua rotina, assim como os grupos de discussão artística dos quais participou. Foi um momento prolífico que reforçou suas convicções sobre a arte ser livre e estar ao alcance de todos. Na Bienal de São Paulo de 1979, por exemplo, Geraldo de Barros chegou a distribuir folhetos que ensinavam a fazer uma obra como a sua em casa. A decisão de delegar a execução das produções casou com o momento em que sua saúde se mostrava cada vez mais frágil, com seguidos acidentes vasculares, que lhe tirariam a vida em 1998, aos 75 anos.

Suas obras disponíveis ainda hoje – desenhos, pinturas, telas de laminado, fotografias, gravuras – estão sob a tutela da galerista Luciana Brito, numa relação que ultrapassa os 20 anos. A amizade de longa data com Fabiana, sua colega de faculdade, permitiu a convivência próxima com o artista e com o homem. “Para mim, a relação avançou para além do profissional e se tornou afetiva. Geraldo de Barros desperta interesses muito distintos, que vão desde a busca por fotografias, gravuras e pinturas à montagem de exposições no Brasil e fora também”, aponta Luciana. O reconhecimento pela obra avança há tempos as fronteiras nacionais. Além da Suíça, onde Fabiana e Michel realizam um trabalho primoroso de conservação e divulgação da herança artística, Alemanha e Itália já montaram individuais do artista. Generoso, ele tinha o hábito de fazer doações a museus e espaços de arte. O Instituto Moreira Salles, por exemplo, tem cerca de 2 mil itens – algo próximo a 620 registros da Fotoformas, produzida no pós-guerra, e outra centena pertencente à série Sobras estão entre eles. “Cuidamos com especial dedicação desse acervo rico, que passa por todas as vertentes da construção da imagem”, conta João Fernandes, diretor artístico do IMS. Se em seus próprios planos a vontade de espalhar a arte por diversos meios era uma batalha pela qual valia lutar, podemos celebrar: a dimensão plural de Geraldo de Barros venceu. ●

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2023-03-16T07:00:00.0000000Z

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