Casa Vogue

Mudança de eixo

POR LILI TEDDE*

Segundo a trend forecaster Li Edelkoort, a criatividade tem novo endereço e passa necessariamente pelo orgânico e pela exaltação do belo

Dona de uma das sensibilidades mais aguçadas do planeta para prever tendências, Li Edelkoort afirma que o caminho para o futuro passa pela valorização de tudo o que é orgânico, pela exaltação da beleza como instrumento de cura e pelo olhar para nossas próprias origens. Segundo ela, verdadeiro oráculo do séc. 21, chegou a hora de o Sul dar as cartas no tabuleiro da criatividade global

acordar cedo, trabalhar incansavelmente, estudar, ler, escutar, aprender, cozinhar e, acima de tudo, observar. Eis os hábitos que fazem de Lidewij Edelkoort uma das mais respeitadas trend forecasters do planeta, capaz de desvendar o caminhar da humanidade e antecipar nossos anseios quando ainda nem sequer conseguimos imaginá-los. Ativista, educadora e curadora, essa holandesa radicada na França é conhecida por trabalhar com imagens impactantes e por se expressar de forma simples e forte, incapaz de deixar dúvidas sobre suas ideias e ideologias. O desafio de Li, como é chamada, é manter-se atenta a tudo: de novos designers e estilistas à sociedade global em seu conjunto. A seguir, numa prazerosa conversa remota a partir de sua casa na Normandia, a previsora de tendências fala sobre a mudança do eixo criativo do planeta – tema de Proud South, novo livro que joga luz sobre a produção cultural contemporânea de América Latina, África e Ásia – e aponta que nada hoje é mais vital do que valorizar as próprias origens.

Em todos os últimos livros de tendências de lifestyle há muitas curvas, inspirações circulares, redondas...

Sim, estamos vivendo um momento orgânico, e acredito que trato disso no livro Animism, em que sugiro que o designer encontre a forma, em vez de criá-la [“animismo” é a religião antes de todas as religiões, a crença de que tudo tem energia e alma]. No mundo natural, que inclui o corpo humano, tudo é curvilíneo, redondo, não há pontas.

Foi o ser humano quem criou a linha reta e as pontas angulares?

Temos poucas evidências de formas quadradas na natureza. Que eu saiba, há somente um tipo de água-viva, a cubozoa. Ela é como uma linda caixa quadrada e, quando se move, abre e fecha. Mas é exceção. Acredito que o quadrado é parte de uma dominação cultural masculina, racional e modernista. As formas mais orgânicas são antigas, do início dos tempos, pré-históricas às vezes, inclusive no que se refere à construção. A exceção são as cerâmicas: elas possuem formas retangulares, mas trabalham com as texturas irregulares, ou distribuições irregulares de cores. Assim, mesmo retas, têm um aspecto orgânico. E eu não vejo de forma alguma o fim dessa tendência orgânica, nem no futuro mais distante.

Entendo que tudo isso está ligado à pandemia...

Tudo isso já estava no forno, sendo preparado, mas aconteceu muito rápido por conta da pandemia. Você pode dizer que a pandemia foi uma lupa para as tendências, colocou-as em destaque de forma mais forte. Então, The Great Disruption [de 2022], nosso último livro de tendências de lifestyle, é sobre tudo que mudamos na vida. Os ambientes das casas ganharam funções diferentes: a cozinha se torna a cantina, o quarto muitas vezes é a sala de reunião onde temos paz e silêncio, a mesa de jantar, o lugar de convivência.

Há um lugar no mundo onde possamos notar essa tendência com mais força?

Vemos isso de forma muito intensa nos Estados Unidos. As cidades grandes estão se esvaziando, e as menores, ganhando relevância. Isso terá uma inf luência nas eleições no futuro. Como as empresas não estão refazendo seus escritórios, as cidades estão ficando mais silenciosas. Muitos restaurantes se mudaram ou fecharam. Trabalhar em casa por vários dias na semana é algo que tem grande repercussão. Assim, a transformação é no mapa urbano também. As empresas precisam pensar em como atingir os novos consumidores, como fazer para conhecê-los – e não pode ser somente online. Será preciso haver eventos, experiências, lojas menores, lojas fora dos grandes centros, lojas-destinos. A velha ideia de ter uma flagship store ou showroom talvez não funcione mais.

No livro mais recente, você menciona a importância da beleza e as questões mentais que atingem cada vez mais as pessoas.

Sim, no livro falo da dor que precisamos tratar, assim como do importante papel do artesanato e da beleza. Começo a entender mais e mais sobre a relação entre beleza e cura. Mesmo com as pequenas coisas, como um lindo copo, um cookie, um chocolate – estamos numa fase de tentar obter o máximo delas. Recentemente, foi provado que beleza é muito importante para a saúde mental. Há um livro prestes a ser lançado que vai explicar em termos neurológicos como a beleza impacta as pessoas, o que é muito interessante, pois mostra o quão necessário é o nosso trabalho. Ainda mais nestes tempos caóticos, em que tudo o que você precisa é de mais amor e beleza. Simples assim.

Quando a gente coloca vários talentos juntos no livro Proud South, sejam eles fotógrafos, designers, artesãos de vários lugares do Sul global, a gente vê quão forte é esse DNA deles, tão diferente da criação que ocorre no Norte. Como poderíamos ajudar

“Foi provado que a beleza é muito importante para a saúde mental. Há um livro que explica em termos neurológicos como ela impacta as pessoas. Em tempos caóticos, tudo o que você precisa é de mais amor e beleza, simples assim”

“A palavra ‘original’ tem raiz no termo ‘origem’. Se você quer ser original ,ese pertence ao Sul, você não pode assumir uma forma do Norte. Para designers e empresas, é vital que desenvolvam essa originalidade”

as empresas e as escolas a acreditarem nisso e entrarem na mesma onda em termos de criatividade?

É uma questão de educação, a individual e a coletiva, a das escolas e a das empresas. Essa consciência tem de crescer, precisamos ter mais testemunhos desse reconhecimento. Acredito que as escolas deveriam ensinar como as pessoas podem se apoderar de suas raízes e de suas origens. O reconhecimento da origem é importante, e é muito bonito, porque a palavra “original” tem raiz no termo “origem”. Se você quer ser original, e se pertence ao Sul, você não pode assumir uma forma do Norte. Para designers e empresas, é vital que desenvolvam essa originalidade.

Estamos falando de cores, texturas, fibras, padronagens?

Sim, mas também de formas e volumes, mais grandiosos e não tão rígidos como os do Norte. Deve haver uma forma de exuberância, mesmo que seja um vestido neutro. Se for um interior, ele tem artefatos mais brutos, ou materiais não tão acabados, que vêm direto da natureza. A reciclagem logicamente é importante, pode dar uma sensação volumosa, um visual maluco. Trata-se de aprender a ser você mesmo. A bem da verdade, os designers do Norte já usaram muitos arquivos e inspirações do Sul. O Sul precisa pegá-los de volta.

Entendo que o Sul teria uma riqueza maior em termos de padronagens...

Quando as pessoas do Norte usam uma padronagem, todo o resto precisa ser neutro, eles geralmente aceitam uma única estampa. Já no Sul, o costume é usar várias padronagens ao mesmo tempo. Quanto mais se usa, mais interessante parece, tudo vira uma coisa só, enquanto que, se você brinca com uma única estampa, ela se destaca muito mais. Na decoração de um ambiente, por exemplo, é muito interessante quando o tapete, as almofadas, uma cadeira, um quadro, uma escultura ou uma moldura pintada no espelho têm, cada um, uma estampa diferente – vira uma acumulação e dá origem a um conjunto expressivo. Eu sempre volto àquela foto que usamos na revista Bloom – Brasil Saboroso [de 2014], que tem a casa de uma mulher do Nordeste pintada por ela própria. Todo mundo reconhece o poder daquelas imagens. Então, sim, devemos usar mais cores, pinturas, motivos animais, estampas, elementos figurativos...

Como você explicaria, é um padrão de beleza?

Sim. Hoje a mulher mais icônica é a Frida Kahlo, não a Marilyn Monroe, uma estrela loira de Holly wood vestida de forma sedutora. Agora esse padrão é o de uma mulher local, que se vestia com roupas originais. O foco, nesse momento, é nas vestimentas, e não na pintura, é uma forma feminista de buscar sua própria linguagem.

E de que forma você acredita que podemos ter uma vantagem sobre o Norte, ao mostrarmos essa criação do Sul?

Nós do Norte não temos mais o sangue, estamos inanimados. Nossa criação está muito plana, o marketing nos sufocou. Neste momento, desejamos estímulos visuais, cores e alegria. Assim, o Sul seria quase uma cura para o Norte. E tomaria sua emancipação nas próprias mãos, pois ela está a caminho, mas não está aí totalmente.

Elevar a autoestima, estudar e acreditar nas nossas criações...

Sim, acreditar na sua própria natureza, espero que isso aconteça. Quando dou palestras e falo sobre o tema Proud South, seja no Japão, na Europa, seja nos Estados Unidos, as pessoas entendem que esse é o momento. O livro é a camada externa da força. A convicção está aqui e vai ficar cada vez mais forte, como o movimento Vidas Negras Importam, por exemplo. O governo da Holanda está agora pedindo desculpas oficiais pelo que o país fez nas colônias. Isso gera uma irrupção enorme de emoções, boas e ruins, porque é dolorido e necessário também. Pessoas estão entregando peças para museus, para dar início a esse processo e ajudar nessa mudança.

Sim, aqui temos muita esperança sempre, queremos acreditar que teremos uma vida melhor. É estranho, porque no Brasil vivemos em uma eterna crise, e quando o Norte começou a sua crise, todos entraram em pânico...

Não temos armas para lutar, não sabemos como fazer isso. Ontem assisti a um filme de Bangladesh, Rickshaw Girl, com cores lindas, a típica família muito pobre vivendo em meio à beleza e pintando. Sempre fico impactada quando vejo as mulheres pobres indianas trabalhando com o bebê nas costas, elas têm as cores mais lindas, as roupas mais maravilhosas, com vários braceletes, é um híbrido de felicidade e pobreza. Felicidade sem necessidade de nada mais. Tão diferente dos sem-teto das ruas de Nova York, porque elas se mantêm, encontram soluções... São maneiras completamente diferentes de pensar. No Norte, estamos desistindo. E, no Sul, vocês estão apenas começando a ficar mais corajosos. Mas o primeiro passo é reconhecer sua origem e abraçá-la. Estudá-la e encontrar a essência de tudo.

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