Casa Vogue

Caminhos possíveis

TEXTO LÚCIA GUROVITZ

Diplomata e jurado do Prêmio Pritzker, André Corrêa do Lago discute como tornar as construções e as cidades mais sustentáveis

Diplomata há 40 anos, André Corrêa do Lago tem ampla experiência como negociador na área ambiental, conhecimento especialmente valioso hoje, em sua trajetória paralela como curador e crítico de arquitetura. Primeiro brasileiro a integrar o júri do Prêmio Pritzker, ele está no centro das discussões sobre como tornar as construções e as cidades mais sustentáveis

oconvite para esta entrevista pegou André Corrêa do Lago em um momento de mudança. Instalado na Índia como embaixador desde 2019 (antes, serviu no Japão entre 2013 e 2018), ele conversou com a Casa Vogue na expectativa de assumir o cargo de secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Itamaraty. Isso significa retornar ao Brasil depois de anos no exterior. “Estou animado”, diz. Além de especialista em sustentabilidade – entre outras funções, foi negociador-chefe do país para a conferência Rio+20 –, André também é um apaixonado por arquitetura, área em que atua como crítico, curador e escritor. Essa combinação de habilidades o qualificou a ser o primeiro brasileiro a participar do júri do Prêmio Pritzker (cujo vencedor de 2023 já terá sido anunciado quando esta edição estiver publicada), no qual ingressou em 2017. Autor de Oscar

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Niemeyer, uma Arquitetura da Sedução (BEI Editora, 2007, 128 págs.) e curador do Pavilhão Brasileiro na Bienal de Arquitetura de Veneza em 2014, o diplomata fala aqui sobre modos de construir que melhoram a vida das pessoas.

O que o trabalho como integrante do júri do Prêmio Pritzker proporciona a você de mais enriquecedor?

O convívio com o grupo de jurados. Somos oito no momento, entre arquitetos e profissionais de outras áreas. Os arquitetos trazem muita informação e nós, os demais participantes, precisamos acompanhar, por isso trocamos ideias continuamente. Para quem gosta de arquitetura, é ótimo ter essa justificativa para estar atento ao que acontece no mundo todo.

Quais obras de arquitetura mais chamaram sua atenção ultimamente?

Uma boa descoberta foi o trabalho das irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara, que compõem o Grafton Architects, premiadas em 2020. Elas incorporam estruturas inspiradas em estádios ao desenho dos prédios e, com isso, conseguem criar espaços internos únicos. O edifício mais espetacular da dupla fica na América Latina – a nova sede da Universidade de Engenharia e Tecnologia, em Lima. Outro arquiteto com uma obra impressionante é Balkrishna Doshi (1927-2023), vencedor de 2018, que, infelizmente, morreu há pouco tempo. Já o conhecia da Índia e ele foi pioneiro ao desenvolver a ideia de casas populares que pudessem ser adaptadas pelos moradores. O conceito foi utilizado mais tarde, de forma contemporânea, pelo chileno Alejandro Aravena, atual presidente do júri do Pritzker.

Alguns dos laureados recentes têm um trabalho que se destaca por responder a desafios ligados à crise climática. Isso é um reflexo de sua entrada para o júri? O fato de

eu ter uma trajetória conectada à sustentabilidade influencia minha maneira de ver a arquitetura. Mas o júri todo se preocupa com o tema. O Aravena aborda a dimensão social de forma interessante graças às consultas públicas que costuma fazer nos bairros onde constrói. Outra integrante, Deborah Berke é diretora da Faculdade de Arquitetura de Yale, e lá a questão da sustentabilidade se tornou central. Contamos ainda com o profundo conhecimento de Stephen Breyer, juiz aposentado da Suprema Corte americana, pois ele já julgou diversos casos sobre o assunto.

Entre as premissas sustentáveis adotadas pelos premiados, quais você considera as mais promissoras?

A sustentabilidade possui três aspectos: social, econômico e ambiental. No âmbito social, o Francis Kéré, de Burkina Faso, vencedor de 2022, e a dupla francesa Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal, ganhadora de 2021, entendem que o cliente não é só quem constrói o prédio, mas também quem ocupa o local depois de pronto, e, por isso, ouvem a população, discutem o que será feito. Esse enfoque, também utilizado pelo Aravena, está transformando a arquitetura e pode ser reproduzido em qualquer lugar do mundo. Nos quesitos econômico e ambiental, há uma maior conscientização a respeito de materiais e técnicas. Uma das razões para o Kéré empregar tradições locais de construção com terra é evitar os custos ambientais e financeiros do transporte. Lacaton e Vassal fazem reformas, ou seja, aproveitam estruturas existentes. No restauro de edifícios de habitação popular dos anos 1960, na França, eles acrescentaram varandas nas fachadas, o que dobrou o tamanho dos apartamentos a um custo muito menor do que derrubar e construir de novo.

Numa entrevista em 2014, você disse que não havia um substituto claro para o governo federal como promotor da arquitetura de qualidade no Brasil. Como avalia a atuação

“A cidade precisa ser vista como uma entidade que inclui todos os seus espaços e habitantes. Juntar diferentes faixas de renda na mesma vizinhança é algo essencial”

do poder público hoje?

Não existe mais o modelo que deu origem a Brasília, pois a legislação mudou ao longo do tempo, mas temos progressos interessantes. Hoje, o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) desempenha um papel importante ao promover concursos em parceria com órgãos do Estado e isso é extremamente positivo. Participei dos júris que selecionaram os projetos para o pavilhão brasileiro na Exposição Universal de Osaka, em 2025, vencido pelo Marcio Kogan, e para o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, de autoria do Andrade Morettin Arquitetos. Vejo também governos estaduais e prefeituras erguendo escolas com arquitetura de ótima qualidade. O Brasil tem ainda uma tradição de bons edifícios em museus financiados pela iniciativa privada. Porém, mesmo que outras entidades ocupem esse espaço, acredito que o Estado tenha a obrigação de levar cultura e qualidade para a população nas obras de arquitetura que realiza.

Qual o papel da arquitetura residencial na formação do repertório brasileiro?

Superimportante e nossos arquitetos são mestres no assunto desde os anos 1930. A casa modernista brasileira antecipou um jeito de viver mais informal, que se espalhou pelo mundo todo e perdura até hoje. É uma casa aberta, voltada para o jardim, com muita luz natural e materiais aconchegantes, como a madeira. Essas características resultam em projetos incríveis, desde a Casa das Canoas, do Oscar Niemeyer, até os mais recentes, criados por Isay Weinfeld, Marcio Kogan, Paulo Jacobsen, Thiago Bernardes e tantos outros. A riqueza da nossa arquitetura residencial também pode ser um ref lexo de que não existe tanta demanda para os escritórios em outros campos de atuação. Mas sou um eterno otimista. Fico feliz quando vejo no jornal anúncios de edifícios para a classe média com apartamentos claros, arejados. O modernismo se tornou o traço natural para os nossos arquitetos.

Nas últimas décadas, assistimos à proliferação dos condomínios fechados no mercado imobiliário, tanto verticais como horizontais. Quais são as consequências dessas grandes áreas muradas para a vida nas cidades?

A questão da segurança é uma tragédia nacional e dá origem ao terror de sair às ruas. Por isso, as classes mais altas optam por viver em condomínio, que faz as vezes de bairro, e passear em shopping, substituto da praça. Acontece que esses locais não são espaços públicos de verdade porque excluem parte da população. O antídoto seria devolver a cidade para as pessoas. Nos Estados Unidos, os subúrbios se expandiram nos anos 1960 em razão da insegurança gerada pelas revoltas ligadas à luta racial nos centros das cidades. Washington chegou a ser incendiada depois do assassinato de Martin Luther King. Após a reconstrução da capital americana, com o retorno da sensação de segurança, a população voltou a morar ali. Infelizmente, toda metrópole brasileira está diante desse desafio e a situação só será revertida com um grande investimento em segurança.

Como as cidades podem contribuir para o combate às mudanças climáticas?

Buscando ideias sob medida para seus problemas. Em Roma, hoje circulam micro-ônibus elétricos, quase sem ruído. As ruas de lá são mínimas. Se passasse um ônibus grande e barulhento, os moradores iriam odiar. Casos assim mostram a necessidade de ouvir a população. Mas as soluções não podem ser localizadas demais. A cidade precisa ser vista como uma entidade que inclui todos os seus espaços e habitantes. Juntar diferentes faixas de renda na mesma vizinhança atualmente é considerado algo essencial. Em Paris, a loja de departamentos Samaritaine acaba de ser reaberta após uma intervenção, de autoria do escritório japonês Sanaa, que combina,

“As pessoas percebem a boa arquitetura mesmo que de modo subconsciente. Acredito na acupuntura urbana de que falava Jaime Lerner: microintervenções que melhoram a vida da população”

na mesma quadra, comércio de alto luxo, hotel cinco estrelas, creche e habitação popular. Uma nova legislação prevê essa mistura. No Brasil, ela seria combatida. O condomínio fechado é o contrário da Samaritaine.

O conceito de “cidade de 15 minutos”, no qual os moradores resolvem a vida em deslocamentos curtos, faz sentido para você?

Muito. Sou do Rio de Janeiro, mas morei em Brasília durante anos. Por mais que existam críticas ao projeto urbanístico do Lucio Costa, as superquadras foram pensadas dessa forma. Os moradores encontram o essencial para o dia a dia numa caminhada de, no máximo, oito minutos, porque sempre existe uma quadra comercial por perto. Além disso, os prédios erguidos sobre pilotis criam um espaço público de convívio no nível da rua. Essas características do urbanismo de Brasília permaneceram contemporâneas.

O que é possível fazer para aumentar a consciência da população para a importância da arquitetura?

Não acho que no Brasil tenhamos menos apreço pela arquitetura do que em outros países. Se você perguntar a um morador de São Paulo quais lugares ele gosta de frequentar, a resposta provavelmente será: Masp, Ibirapuera ou o nome de uma praça. As pessoas percebem a boa arquitetura mesmo que de modo subconsciente. Acredito na acupuntura urbana de que falava Jaime Lerner: microintervenções que melhoram a vida da população. Uma das grandes notícias para o urbanismo do Brasil nos últimos anos foi a demolição do viaduto da Perimetral, no Rio de Janeiro, substituído por um túnel. A obra devolveu ao centro da cidade a vista para a Baía de Guanabara.

Você, como diplomata, passa longos períodos longe do Brasil. Como faz para ter a sensação de casa nos lugares onde mora?

Procuro me cercar de objetos brasileiros. Tenho livros, móveis e lembranças que carrego comigo. Mas, além desse lado físico, acontece um fenômeno engraçado com quem vive muito tempo fora do Brasil: a gente fala do país o tempo todo. O que torna o Brasil fascinante é o fato de ser um lugar muito dinâmico. Temos essa vontade constante de melhorar. Estou animado de voltar e descobrir as novas dimensões do país.

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