Casa Vogue

Pequeno museu da pessoa

POR GUILHERME AMOROZO FOTOS ALBERTO RENAULT

Diretor e roteirista de alguns dos mais reconhecidos programas de TV sobre moradia e arquitetura do país, Alberto Renault já visitou mais de mil residências em busca de contar suas respectivas histórias. A partir das descobertas dessa trajetória, agora resumida em livro, ele aponta os múltiplos papéis que uma casa é capaz de exercer na vida de cada um

durante um período nos anos 1970, ainda criança, Alberto Renault percorria, a bordo de um ônibus escolar, um longo trajeto entre o Leblon, onde morava, e o Cosme Velho, onde estudava. O périplo era preenchido pela visão dos prédios, casas, palacetes, portarias e janelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, cujos estilos, formatos e detalhes ajudaram a despertar no menino um interesse por arquitetura e estética cultivado até hoje, pessoal e profissionalmente. Dono de uma extensa carreira como escritor, diretor de TV, roteirista, dramaturgo e cenógrafo – “meu trabalho é criar imagens, seja através da palavra ou da imagem em si” –, construiu desde a infância um repertório capaz de levá-lo a comandar, a partir de 2010, alguns dos programas sobre arquitetura e moradia mais reconhecidos da TV brasileira: Casa Brasileira, Morar, Morar Mundo, Caminho Zen, Lar: Vida Interior (todos no canal GNT, hoje disponíveis no Globoplay) e De Casa em Casa (no YouTube). Uma fração das mais de mil residências que ele calcula ter visitado na produção dessas atrações figura no seu mais novo livro, Fotos Caseiras (Capivara, 2022, 316 págs.), em que, à luz de imagens clicadas por ele mesmo (sem nenhuma intenção de publicar um livro depois, diga-se, daí o trocadilho do título), Renault conduz o leitor por uma série de reminiscências e reflexões ligadas ao universo do morar. A seguir, em conversa exclusiva com a Casa Vogue, ele discorre sobre o papel da casa na preservação da memória, na formação da sociedade e na criatividade humana.

Você começa o livro falando sobre o acaso, responsável por ter ido morar no prédio erguido no exato terreno onde era a casa do seu avô, em Ipanema. Construir, reformar, decorar uma casa, porém, depende de muito planejamento. Se houvesse uma receita ideal, o quanto de planejamento e de acaso seria necessário para a história de uma casa merecer ser contada, em vídeo ou em livro?

A casa é 100% de planejamento e 100% de vida, ou seja, os dois. Até porque dentro do planejamento cabe acaso, acerto, mudança, uma casa nunca está pronta. Esses encontros entre o planejamento e o acaso, entre a técnica e a poesia se traduzem muito numa fala do Paulo Mendes da Rocha – um dos últimos projetos residenciais dele está no livro, uma casa em São Bento do Sapucaí, SP. Na genialidade do Paulo, ele fala do barulho da cozinha, e faz uma ode poética ao omelete, ao barulho do garfo batendo no prato. O jeito que ele preenche a arquitetura com as palavras é primoroso.

Há uma frase no livro que parece resumir um pouco do seu olhar para a casa: “habitar é criar hábitos”. O que isso quer dizer?

Sim, isso esbarra na minha própria casa. Meu habitar é muito feito de hábitos, é a vela que eu acendo, é o jeito que eu abro a cortina, é a fresta que eu deixo da vista, é o livro que eu estou lendo em cima da mesa, esse acúmulo de objetos e pequenas narrativas que vão compondo a imagem da casa, e que, às vezes, não é possível traduzir numa fotografia. O que ocupa e dá vida a uma casa é imaterial.

Estamos falando também da memória, não?

A casa é o lugar da memória, isso é muito recorrente. O Emanuele Coccia fala que a casa é o pequeno museu da pessoa. Você não guarda suas memórias na rua, na praça – é em casa.

Por que nós gostamos tanto de casas com estantes cheias de livros, discos e objetos?

Eu entro numa casa olhando os livros e me reconhecendo. A estante é esse pequeno museu da pessoa, onde ela coloca a lembrança que trouxe de Machu Picchu, um retrato, um cartão-postal, os objetos se misturam com os livros... É o lugar onde a pessoa pode fazer quase que um altar, um culto da história dela. O que existe de interessante numa casa é a vida que está aí dentro, e a estante é o lugar que mais traduz essa vida.

E, na sua opinião, o fato de termos cada vez mais destas coisas – literatura, cinema, música – armazenadas na nuvem ameaça a configuração das casas no futuro?

A minha está mudando, tem muito menos revistas, por exemplo [risos]. Sou ávido comprador de revistas desde criança, mas passei para a revista digital. Acho que tudo vai mudar, o quarto de um jovem nos anos 1980 ou 90 era uma pilha de revistas, o espaço tinha muito mais materialidade. Mas o livro de arte, os livros que têm privilégios ainda na estante ou em cima das mesas, ainda os vejo muito presentes.

Qual é a importância do som e da música dentro de uma casa, segundo alguém que vive de traduzir casas para o meio audiovisual?

Acho importantíssimo, a pessoa ouvir e entender qual o som daquela casa. Quando estiver buscando um imóvel, tentar ir à casa em vários horários, para ouvir os

“Eu tento não impregnar no meu discurso nenhuma regra, nenhuma verdade absoluta. No mundo de hoje, cabe mostrar a diversidade. Vivemos numa realidade diversa, cheia de ‘bons gostos’. É preciso ver todos, para poder inventar o seu”

Entrevista

pt-br

2023-03-16T07:00:00.0000000Z

2023-03-16T07:00:00.0000000Z

https://casavogue.pressreader.com/article/282621741948303

Infoglobo Conumicacao e Participacoes S.A.