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Tesouro de alagoas

Com cerca de 500 habitantes, a Ilha do Ferro, pacato povoado no sertão alagoano, à beira do Baixo São Francisco, consolida-se como um dos grandes polos de artesanato e arte popular do país e tem atraído visitantes interessados em perambular pelos ateliês,

POR REGINA GALVÃO FOTOS GUI GOMES

crianças, na rua de terra, a brincar com cavalinhos de madeira feitos de galhos de árvores; mulheres lavando roupas à beira do rio em animado bate-papo; um idoso, de olhos fechados, a mover-se lentamente na cadeira de balanço em frente à casa de fachada colorida onde vive. São momentos como esses que presenciamos ao visitar a mágica Ilha do Ferro, no sertão de Alagoas. O distrito, a 266 km de Maceió, pertencente ao município de Pão de Açúcar, está cravado entre a vasta caatinga e o lendário Rio São Francisco.

Regidos pelo tempo da natureza, os minutos ali parecem se estender vagarosamente. Galinhas e cachorros circulam sem receio pelas poucas ruas do vilarejo; embarcações deslizam com suavidade pelas águas caudalosas do Velho Chico; as falas dos habitantes são mansas; as moradas são singelas, e a simpatia de seus moradores é generosa.

As fachadas com platibandas, construídas em meados do séc. 20, no apogeu da produção algodoeira e canavieira, exibem cores diversas. Pois não bastassem as belezas naturais e seu peculiar conjunto arquitetônico, a Ilha do Ferro ainda leva a fama de ser o lugar com mais artistas por metro quadrado do Brasil. “A vila é um centro vital de criação popular, com muitos habitantes dedicados à arte, seja em madeira ou em bordado”, afirma a jornalista e curadora Adélia Borges, que esteve no local em janeiro pela quinta vez, na companhia de duas renomadas curadoras de arte: Ana Belluzzo e Aracy Amaral.

Com todos esses atrativos, não é por acaso que o povoado, que leva nome de ilha supostamente por causa da ilhota na frente do vilarejo, venha recebendo tantos forasteiros do circuito cultural. Os apresentadores Zeca Camargo e Luciano Huck, a dupla de grafiteiros Os Gêmeos e o diretor de cinema Tadeu Jungle foram alguns dos ilustres visitantes que estiveram na Ilha em tempos recentes.

CHEIA DE ESTÍMULOS

O fato é que esse turismo seduz principalmente os amantes da cultura popular, que se conectam com a vila. “Construímos esta casa quando percebemos que já estávamos apaixonados pelo local e por seus moradores. Durante anos, eu só enxerguei o artista e seu ateliê, em uma constante preocupação de comprar peças para minha galeria. Houve um momento, porém, em que comecei a olhar com mais atenção seus habitantes: o dono da mercearia, o velhinho de 80 anos que contava histórias, a dona Morena, bonequeira e narradora das memórias daqui, o rapaz que caçava passarinhos”, conta Maria Amélia Vieira, que frequenta a vila desde os anos 1990, com o marido, Dalton Costa, também artista e dono da Karandash, em Maceió, galeria dedicada à arte popular. O casal mantém três charmosas casas no povoado – a da Estrelinha, a Toca do Frei e a Sibite –, todas disponíveis em sites de aluguel por temporada.

Visitar os ateliês, alocados nas residências dos artesãos, é uma das principais diversões do destino. O Boca do Vento, o mais conhecido deles, tornou-se relevante graças a Fernando Rodrigues – o artesão confeccionava tamancos, ofício aprendido com o sogro, até descobrir o talento artístico aos 70 anos. Foi o olhar apurado do fotógrafo alagoano Celso Brandão que identificou originalidade nos móveis fabricados por ele para o bar construído para o filho.

“Ilha do Ferro não existia no mapa de Alagoas e eu fui até lá fotografar o bordado boa-noite, típico daquela localidade, com a curadora Cármen Lúcia Dantas. Quando terminei o trabalho, saí andando pela rua principal e encontrei seu Fernando nesse bar: uma construção redonda que lembrava as barracas de coco de Maceió. A mobília havia sido feita por ele e os bancos de mulungu tinham formas de totens, com assentos forrados de borracha de pneus de bicicletas, e havia outros com pés de forquilhas. Alguns tinham versos gravados nos assentos. Tudo aquilo me chamou a atenção. Identifiquei ali um conceito de design”, afirma.

Não tardou muito para os bancos de seu Fernando “ganharem o mundo”. Adélia Borges, amiga de Celso, incluiu-os na curadoria da exposição Uma História do Sentar, ao lado de móveis de Fernando e Humberto Campana, para a inauguração do Museu Oscar Niemeyer, em 2002, em Curitiba. Maria Amélia Vieira foi outra que se encantou por aquela mobília rústica que relatava histórias nos assentos de madeira e tratou logo de apresentá-la a arquitetos apreciadores da arte popular. “Arthur Casas comprou uma cadeira de seu Fernando e a expôs em uma mostra de decoração. Aquilo repercutiu e jogou luz no trabalho dele, que passou a ser valorizado por galeristas e colecionadores”, afirma Maria.

“Durante anos, eu só enxerguei o artista e seu ateliê, em uma constante preocupação de comprar peças para minha galeria. Houve um momento, porém, em que comecei a olhar com mais atenção

os habitantes do povoado”

CRIATIVIDADE EM EXPANSÃO

No pico mais alto da vila e com brisa constante para aliviar o intenso calor diurno, o ateliê Boca do Vento continua um ponto de encontro de moradores interessados em aprender a esculpir a madeira encontrada na caatinga. Valmir Lessa e Rejânia, genro e filha de seu Fernando, se encarregaram de manter o negócio funcionando. Ao lado de Camille, neta do mestre, preservam a tradição, vendendo peças de madeira para colecionadores e lojas do país.

Dedé e Petrônio também são artesãos iniciados por seu Fernando e hoje inventam os próprios personagens em seus ateliês. Como eles, há muitos outros espalhados pela vila: Vieira, Vavan, Vandinho, Aberaldo, Zé Crente, Nonô, Antônio Sandes, Salvinho... Assim como Camille, a primeira mulher a esculpir a madeira no local, Yan, filho de Petrônio, faz parte da nova geração de artistas da terra, que conta ainda com a arte de Luquinhas, sobrinho de Valmir, e de Jonathan, Iago e Edson, do ateliê Mulungu.

Mas nem só de madeira vive o distrito de Pão de Açúcar. Além da pesca, o bordado boa-noite é outro patrimônio local. Com nome de uma flor encontrada na região, a técnica de desfiar o pano de cambraia de linho chegou ao vilarejo por inf luência dos portugueses e se perpetuou entre os fazeres das mulheres. Toalhas, guardanapos, cortinas, jogos americanos e almofadas são bordados pelas artesãs que se reúnem na cooperativa ArtIlha desde 1998. Antes da passagem do designer Renato Imbroisi pela vila, a convite do Museu A CASA do Objeto Brasileiro, de São Paulo, o bordado era sempre branco. Renato as incentivou a investir em linhas coloridas e novos padrões surgiram. “O colorido deu supercerto, tudo o que a gente coloca no estoque vende”, diz Eridan Bezerra Lessa, representante do grupo.

Com uma boa amostragem das obras realizadas no vilarejo, o Museu Ilha do Ferro – Espaço de Memória Artesão Fernando Rodrigues dos Santos se faz parada obrigatória. Fundado em 2017 pela Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), reúne esculturas, móveis e utilitários de vários artistas que deram sequência ao legado de seu Fernando. Para descansar a mente, vale ainda agendar um passeio de barco pelo Rio São Francisco e por suas praias. O artesão Dedé é um dos barqueiros que oferecem esse percurso, assim como Douglas, exímio condutor.

FELICIDADE COMPARTILHADA

Para comer e se hospedar, a Pousada da Vana é a pedida. Com oito quartos envoltos pelo jardim com árvores e plantas da caatinga, o espaço serve ainda fartas refeições, com cardápio que inclui carne de carneiro, galinha guisada com pirão, peixe, arroz, feijão e mandioca. A pousada Redário da Ilha, com vista voltada para as águas doces do rio, o hostel Tubarana e as casas de aluguel são outras opções de estadia.

Quem tem pressa e outros pontos de interesse no Baixo São Francisco vai achar que um fim de semana é o suficiente para realizar toda essa programação. Há, porém, quem prefira curtir a tranquila e criativa atmosfera do povoado por uma semana ou mais. É o caso de André Dantas, que, depois de trabalhar durante anos no consulado brasileiro em Nova York, decidiu fincar raízes na Ilha do Ferro. Inaugurou o Salão em um antigo galpão com paredes verdes e arte por todos os cantos. O local agita as noites do vilarejo com petiscos, bebidas e música brasileira de alta qualidade. André idealizou ainda o projeto Cabra, que hospeda artistas contemporâneos no povoado a fim de propiciar uma troca de saberes entre eles e os jovens e as crianças da comunidade.

Os encantos não param por aí. O talento desse povo simples e hospitaleiro se manifesta também na música, com seresteiros e forrozeiros a se apresentarem nas noites de brisa fresca na rua principal. Muitos desses personagens contados aqui foram retratados no documentário Bom Dia, Boa Tarde, Boa Noite, disponível no YouTube e dirigido pelo designer Rodrigo Ambrosio, com o apoio do Alagoas Feito à Mão, programa de incentivo ao artesanato do governo do estado. A alegria contagiante que se vivencia nesse patrimônio regional também está registrada no curta. “Na Ilha do Ferro você tem a oportunidade de conversar espontaneamente com os locais. Essa convivência é enriquecedora e, por isso, meu desejo é de que essa harmonia permaneça e que os forasteiros respeitem e conservem a riqueza natural e humana, sem querer se impor a ela ou descaracterizá-la”, ref lete Adélia Borges.

“A alegria é um sentimento que contamina e, na Ilha do Ferro, ela é frequente, com a oportunidade de conversar espontaneamente com todos os moradores. Essa convivência faz bem e é inspiradora” ADÉLIA BORGES

Destino

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2023-03-16T07:00:00.0000000Z

2023-03-16T07:00:00.0000000Z

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