Casa Vogue

Beleza fundamental

POR LAURA ARTIGAS FOTOS MANUEL SÁ

O arquiteto português Álvaro Siza discorre sobre sua obra e a relação com o Brasil, às vésperas de completar 90 anos

Perto de completar 90 anos, o português Álvaro Siza se mantém como referência suprema entre seus pares, graças a um frescor no olhar que sempre o caracterizou. Em trechos inéditos da entrevista que deu origem ao documentário Paisagem Concreta, o arquiteto fala sobre sua trajetória, a relação com o Brasil e o belo como elemento substancial na arquitetura

uma grande janela emoldura o Rio d’Ouro, na cidade do Porto, norte de Portugal. É para essa vista que o arquiteto Álvaro Siza desvia os olhos ao longo do dia enquanto faz seus esquiços (esboços, em português de Portugal). Na sala não há computador, as paredes estão forradas de desenhos, plantas baixas, fotos, tudo sobreposto – o ambiente tem ares de ateliê de artista. Para estar ali, frente a frente com o vencedor do Prêmio Pritzker de 1992, foram 12 meses de agendamento prévio.

As obras de Siza Vieira, como é conhecido em Portugal, podem ser vistas em quatro continentes, com destaque para as poéticas Piscinas das Marés e a Casa de Chá da Boa Nova, em sua cidade natal, Matosinhos; o conjunto habitacional Bonjour Tristesse, em Berlim; o Museu Mimesis, na Coreia do Sul; a sede do Banco de Cabo Verde, em Praia, capital do país; e o edifício da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, sua única obra na América do Sul. A construção abriga e difunde o acervo de pinturas do artista gaúcho Iberê Camargo. Quem olha por fora vê um prédio feito de betão branco (concreto, em português de Portugal), com tentáculos se desgarrando de uma grande estrutura e janelas bem pequenas, de formatos variados, distribuídas de maneira (aparentemente) irregular.

O edifício na região Sul, no entanto, não foi o primeiro contato de Siza com o Brasil – o país já tinha um lugar cativo no imaginário desse grande arquiteto. Seu bisavô Júlio Siza era retratista e teve um estúdio de fotografia em Belém no final do séc. 19 – era o auge do Ciclo da Borracha. As músicas de Caetano Veloso, o modernismo de Niemeyer e até as telenovelas contribuíram para enriquecer sua imagem mítica sobre o país, cuja realidade ele conheceu durante as inúmeras pontes aéreas transatlânticas que fez ao longo dos dez anos de construção do edifício da instituição cultural, inaugurado em 2008.

Siza fala com o tom de voz seguro de uma vida vivida intensamente. Nas entrelinhas (sempre bom avisar), às vezes há uma ironia fina e sagaz. Ele é também um ótimo contador de histórias. Passamos três horas juntos, em 9 de setembro de 2017, nas quais um cinzeiro vermelho se encheu de cigarros muito segurados, pouco tragados e apagados antes do fim. Nesse mesmo tempo, um copo foi constantemente reabastecido com água. Siza, à época com 84 anos, o levava à boca com as duas mãos trêmulas. No documentário Paisagem Concreta (2022), que roteirizei e codirigi, ao lado de Luiz Ferraz, o arquiteto pode ser visto em movimento, bem como suas obras em Portugal e no Brasil; além de conversas com seus colaboradores nos dois países.

E foi um deles, o colega português António Madureira, que precisou de maneira bem-humorada a obra e a personalidade de Siza: “Penso que ele tem uma grande frustração: quando nasceu, o universo já tinha sido desenhado, e ninguém lhe pediu opinião a respeito. É por isso que ele tem tentado, sempre que pode, alterá-lo um bocadinho. Melhorá-lo”.

Para celebrar os 90 anos de Siza a convite da Casa Vogue, tive o prazer de reviver esse luxuoso e breve convívio com o mestre, reassistindo o material bruto daquela entrevista e resgatando, a seguir, algumas passagens inéditas. Com o sotaque lusitano original, Álvaro Siza Vieira:

Desde quando o senhor desenha? Desde menino. Desenhava no colo de um tio de quem gostava muito, ele me ensinou a desenhar cavalos. Acho que veio dele. Estou a falar de quando tinha uns 8 anos. Um dia, depois de ver um desenho pronto, ele me disse: “Coloca sua assinatura”.

Pesquisando sua biografia, descobrimos que na época da faculdade sua vontade era ser escultor. É verdade?

Era isso que eu queria ser, mas para a minha família a escultura era uma atividade para boêmios. Meu pai queria que eu fosse engenheiro, como ele era, mas nunca me pressionou. Quando propus arquitetura, aceitou. Arquiteto não era muito considerado, era um engenheiro menos sabido. Optei pela arquitetura não porque estivesse interessado, mas porque na minha escola havia pintura, escultura e desenho. Minha ideia era, sem discussões e conf litos, migrar para essa área. Tinha pouca informação sobre arquitetura na época. Nos anos 1930 houve um movimento, mas depois, com o Regime [do ditador António Salazar] chamado de Estado Novo, tudo passou a ser filtrado. Ligava-se a ideia da arquitetura moderna ao

comunismo. Aí encontrei um ambiente que me interessou e esqueci essa coisa da escultura.

Alguns críticos consideram que uma das características da sua obra é o frescor no olhar. A que atribui sua capacidade de renovação constante?

A formação do arquiteto é um acumulado de informações. Multiplicadas, já não ficam no consciente, mas no subconsciente. E, quando se está fazendo o trabalho, o subconsciente vai nos ajudar. Quando chamaram atenção para as rampas do Iberê Camargo, dizendo que parecia o centro cultural criado pela Lina Bo Bardi [o Sesc Pompeia], concordei, mas também há relação com a fábrica Van Nelle, na Holanda. Nada aparece do nada. Até hoje, quando desenho curvas, devo alguma coisa a, com 18 anos, ter visto os projetos do Niemeyer.

Em algumas de suas entrevistas, o senhor cita o catálogo da célebre exposição de 1943, no MoMA de Nova York, Em que momento a arquitetura modernista do Brasil cruzou o seu caminho? Ela influenciou o seu trabalho?

Brazil Builds.

[O catálogo] foi uma bomba na escola! Em um período em que Portugal era muito fechado, além do corte de informações que houve com a Segunda Guerra Mundial, a arquitetura portuguesa era condicionada, seguia um suposto estilo nacional que é uma invenção, a arquitetura do país é diferente no Norte e no Sul. Nossa referência era o Le Corbusier e uma revista chamada Architecture dA’ ujourd’hui. No final dos anos 1940, o professor Carlos Ramos apareceu com o Brazil Builds. Aquilo, para nós, foi uma bomba. A tal ponto que o jeito de desenhar dos estudantes mudou completamente. Ficamos apaixonados pelas plantas em que os pilares eram pontos e os muros eram linhas, curvas... A passagem do Le Corbusier para o Niemeyer era muito natural. Havia uma continuidade de certo modo, e uma novidade enorme. Fomos todos inf luenciados. Foi uma abertura anterior a outras aberturas que sucessivamente começaram a acontecer, como a descoberta do Alvar Aalto e dos italianos, pessoas ligadas à reconstrução dos países no pós-guerra, o neorrealismo italiano, não só na arquitetura, mas nas artes e na literatura.

O senhor já afirmou que “gostaria de ser arquiteto no Rio de Janeiro”. Por quê?

No Brasil tem sempre uma encosta. Mesmo que saia mal o projeto, a natureza [gesticula levantando e abaixando rapidamente os dois braços], “puff ”, recupera tudo. Na primeira vez que fui ao Rio, viajei sozinho. Lembro que enchi três cadernos de desenho como esse [aponta o caderninho a sua frente]. Fiquei impactado com aquela beleza e aquela pungência com a predominância das rochas.

Para o projeto do Iberê Camargo, como lidou com os elementos naturais presentes no terreno?

Quando mandaram as primeiras fotografias do terreno, logo pensei: é pequeno e estreito. Vi a encosta com a vegetação espontânea e aí nasceu logo um propósito: não vou tocar naquela encosta. Não posso

“A formação do arquiteto éum acumulado de informações que ficam no subconsciente. Quando se está fazendo o trabalho, ele nos ajuda. Nada aparece do nada. Até hoje, quando desenho curvas, devo alguma coisa a, com 18 anos, ter visto os projetos do Niemeyer”

estragar uma coisa tão bela e tão natural. A terceira impressão foi a imensidão do espaço em frente, do delta [o Guaíba]. Quando visitei vieram outras impressões, principalmente a luz do poente. Louis Kahn dizia que sem luz não há arquitetura. A modulação do espaço não tem só a ver com a matéria. Tem a ver com a luz e seus movimentos.

Como foi projetar no Brasil, uma vez que sua família tem uma relação forte com o país?

Meu pai falava muito do Brasil. Ele fazia uns relatos apaixonantes. Por exemplo, uns passarocos que faziam a limpeza das ruas do Pará. Não lembro que pássaros são.

Urubu? Exatamente. Urubu. Ele falava das f lorestas e do Rio Amazonas. Isso tem bastante influência nesse projeto [da Fundação Iberê Camargo], porque no fundo eu trazia a cá dentro uma ideia mítica do Brasil. Encantatória.

O senhor usa computadores para projetar?

Uso muito computador, mas através de outras pessoas. Às vezes há esquiços em que a ideia parece muito boa, mas quando coloca no computador e vê-se a maquete, percebe-se que não tem cabimento. Já tentei entender melhor, sento ao lado do colaborador e peço: “Faça isso, experimente aquilo”, mas não dura muito tempo. Fazer essa página de esquiços [aponta um papel repleto de desenhos a sua frente] demora um minuto, e vou pensando, tendo ideia. No computador precisa esperar a seta, depois demora, depois o computador diz: “Está pensando”. Aí vem a primeira imagem. Me irrito. Mas se é para acompanhar o desenvolvimento do projeto em equipe, é fantástico. De fato, é uma revolução no ambiente de trabalho.

“O mais funcional que há é o belo. Não vejo nenhuma contradição entre beleza e funcionalidade ,as duas só funcionam reciprocamente juntas”

O tamanho das janelas dos seus projetos sempre dá o que falar entre os críticos de arquitetura. Observações nesse sentido foram feitas em relação ao projeto do Iberê.

Me fizeram esta pergunta: “Com uma vista tão extraordinária, como faz janelas tão pequeninas?”. Para quem vê de fora, realmente, são umas janelas miseráveis. Mas, quando a obra ficou pronta, começamos a subir pelo percurso das rampas e de repente apareceram umas janelonas enormes. Uma onde se via o centro da cidade e outras de onde se via o delta. Todo mundo ficou surpreso, inclusive eu. O mais funcional que há é o belo. Não vejo nenhuma contradição entre beleza e funcionalidade, as duas só funcionam reciprocamente juntas.

O que o senhor acha que vai ser da arquitetura no futuro?

Não sei. O emprego de novas transformações – e em muitos casos incontroláveis como estamos a assistir. Uma transformação também desordenada, em paralelo a grandes aquisições da ciência e da técnica. Acho que haverá cidades em Marte. Arquitetura em Marte. Certeza que não será como nos livros de quadradinhos [quadrinhos] ou nos filmes de ficção científica. ●

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2023-03-16T07:00:00.0000000Z

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